As manifestações que varreram o país, nestes meados de junho, bradaram o clamor da classe média, em geral acomodada, refratária à assunção de posições políticas, avessa a protestos; sua participação quase sempre se deu na forma de uma maioria silenciosa, tendente a reforçar a ordem estabelecida. Assim, a performance exibida, contrariando qualquer expectativa, trouxe um grito que se amplificou, também pelo inusitado, pela maneira inesperada com que este grupo se postou diante da nação brasileira.
As causas imediatas da reação podem ser entendidas pelas “bandeiras” trazidas à rua: inicialmente o protesto contra o aumento da tarifa dos transportes públicos na cidade de São Paulo [ônibus, metrô e trens], na sequência, inúmeros outros motivos, que vão da corrupção e PEC 37 a uma vaga demanda por direitos, passando por saúde e educação. Estas razões estão claramente apontadas, entretanto, há outras, de ordem mais profunda que, certamente, foram fundamentais para quebrar o imobilismo característico desta classe.
A redemocratização do Brasil, anseio de toda a sociedade civil, não foi capaz de corresponder ao que ela esperava; tendo decisiva participação na eleição de Collor, viu-se traída de saída, com o confisco da poupança. Depois, nos oito anos de FHC, assistiu ao discurso neoliberal, propugnando um estado mínimo e congelando, por todo o período, os vencimentos do funcionalismo público. Congelada foi também a tabela de desconto do imposto de renda, a despeito da inflação, impondo um recolhimento maior do tributo. As elevadas taxas de desemprego estreitavam horizontes e limitavam negociações salariais. Mais decepção.
Diante do desencanto, a eleição de Lula contou com parte dos votos da classe média desiludida com os partidos no poder para, novamente desencantar-se, diante de uma prática que, em nome de um pragmatismo e da governabilidade, fez tábula rasa de um dos seus principais estandartes: a ética na política.
Paralelamente, os governos petistas passaram a realizar uma política econômica de efetiva distribuição de renda, atacando a causa principal da pobreza, o aviltado salário mínimo de cerca de U$ 60 em 2002. Os ganhos da classe média não tiveram reajustes na mesma proporção do mínimo, hoje na casa dos U$ 300. Isso incidiu diretamente no seu cotidiano, já que, por exemplo, o custo da empregada doméstica passou a ter um peso maior no orçamento familiar, determinando a sua dispensa ou a redução para alguns dias da semana. Seja como for, impôs uma queda de padrão de vida.
De outra parte, a afluência de parcela considerável da pobreza para a chamada “nova classe média” provocou um acirramento na disputa de alguns bens. As ruas foram tomadas por carros populares e motos compradas a prestação. Os “shoppings”, antes espaço exclusivo da elite e das camadas médias, passam a ser “invadidos” por consumidores estranhos. O mesmo acontece nos aeroportos, outrora um lugar chique e agora tomado por gente que sequer consegue circular direito por aquele espaço, um verdadeiro horror, no dizer de membros da classe média tradicional.
No âmbito do ensino universitário, o Prouni e o FIES já vinham assegurando a ampliação do ingresso de jovens pobres e da nova classe média em escolas particulares. Entretanto, um dos maiores golpes foi o estabelecimento de cotas para negros, índios e pobres nas universidades públicas. Afinal, antes, a totalidade das vagas se destinava à “justa disputa” entre os vestibulandos que “pelo mérito” as conquistavam. Vale dizer, quase 100% da oferta era absorvida pelo topo da pirâmide social. Daí, a classe média sentir-se lesada em metade das vagas, que eram suas. De fato, o acesso à universidade pública foi, para ela, afunilado e isso causa, além de um sentimento de injustiça, um profundo desgosto.
Finalmente, a gota d’água neste “copo de mágoas” foi a lei assegurando direitos trabalhistas para as domésticas. A relação estabelecida pelos patrões, até bem pouco, mal disfarçava traços de uma herança escravista, ainda corrente entre nós. Agora, elas têm jornada de trabalho disciplinada com direito a horas extras e FGTS, além de férias, décimo-terceiro e INSS, como qualquer outro trabalhador. Novos custos que determinam novos arranjos na rotina doméstica, com a presença cada vez menor da empregada doméstica, símbolo de uma posição social diferenciada.
Assim, nos últimos anos, assiste-se a uma redução crescente dos espaços de exclusividade da classe média, alimentando um ressentimento igualmente crescente, que vinha sendo sinalizado, nas últimas eleições, nas proporções também crescentes de votos brancos, nulos e na abstenção.
Era a mesma classe média passando, de uma forma espontânea, sem organização, o seu recado para a classe política; pela qual ela não se sente representada e que, de sua parte, também não procurou estabelecer qualquer ponte com esta parcela do eleitorado. É como se ela não fizesse falta.
Diante dessa crise de representatividade e de uma escalada de políticas públicas, percebida como restrição de seus direitos, ela sai às ruas para, diretamente, lançar seu grito, fazer seu protesto e, de algum modo, pedir socorro. O movimento, em si, não ameaça a ordem estabelecida, porém, se for mantido o vácuo, se não forem construídas respostas, há o risco de se criarem condições para o surgimento de soluções salvacionistas, capazes de comprometer nossa, ainda frágil, Democracia.
Paulo Cabral
sociólogo e professor
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