Depois das jornadas de junho, o Brasil é surpreendido por mais uma manifestação espontânea da juventude. Dessa vez um pouco incomum, como alguns podem julgar. Adolescentes e jovens das periferias de São Paulo combinam pelas redes sociais da internet os chamados ‘rolezinhos’ em shoppings famosos da cidade, nada mais do que encontros da galera para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. Exatamente tudo o que qualquer outra pessoa faria no mesmo lugar, a não ser por um detalhe, os Shoppings são frequentados por uma grande maioria de pessoas de pele branca, consumidores das classes média e alta. Instantaneamente os/as adolescentes e jovens caminhavam em grandes agrupamentos cantando músicas de Funk Ostentação, fato que causou uma repercussão tão grande, que no sábado, dia 11 de janeiro de 2014, resultou em uma violenta repressão da polícia no Shopping Metrô Itaquera com utilização até de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. No mesmo dia, o Shopping JK Iguatemi conseguiu uma liminar para impedir a realização do rolezinho, já marcado pela internet, prevendo uma multa de R$ 10 mil Reais a quem entrasse no shopping e fizesse tumulto. O interessante é que nesses rolezinhos não foi registrado nenhum furto ou roubo!
Acontece que, essa novidade não é tão novidade assim! Em agosto de 2000 um grupo de militantes do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto organizou uma visita em um grande Shopping do Rio de Janeiro, a repercussão gerou até um documentário. Em fevereiro de 2012, o movimento negro realizou um ato no Shopping Higienópolis em São Paulo, que também resultou em um vídeo. Apesar da repercussão ser semelhante aos atuais rolezinhos, nesses dois casos os eventos não foram espontâneos, eram atos políticos organizados por movimentos sociais.
Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, os rolezinhos já aconteciam há muito tempo. De 1997 a 2004, o município oferecia um benefício no transporte coletivo, onde todo o último domingo do mês o passe era livre. Resultado: mensalmente havia um dia em que o povão das periferias da cidade aproveitaram para ocupar os espaço públicos, entre eles o Shopping da cidade que se preparava com a segurança redobrada, porém não haviam registro de crimes no centro de compras. A Prefeitura Municipal extinguiu o benefício em 2005 com o argumento de ‘diminuir a criminalidade’! Outro fato aconteceu em janeiro de 2012, durante o 10º Encontro Nacional da Pastoral da Juventude, que acontecia em Maringá em uma localidade próxima a um grande shopping da cidade. De forma espontânea, os/as jovens participantes desse encontro, provindos de todas as regiões do país e de maioria negra, simplesmente queriam sair à noite e conhecer os lugares da cidade. Ao entrarem no shopping em um grupo de aproximadamente 30 pessoas, foram vigiados e perseguidos pelos seguranças durante todo o passeio.
No primeiro semestre de 2013, em várias capitais do país era realizado, também por jovens católicos, mas de uma forma não tão espontânea, o chamado flash mob (aglomerações instantâneas de pessoas em certo lugar para realizar determinada ação inusitada previamente combinada) para divulgar a visita do papa Francisco em julho de 2013 na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Muito semelhante aos atuais rolezinhos, porém o estilo musical era outro e a grande maioria dos participantes eram brancos, de classe média, consequentemente as manifestações foram muito bem recebidas em todos os cantos do Brasil. Anualmente, desde 2007, centenas de calouros/as da USP – Universidade de São Paulo, maioria branca e de classe média e alta, se reúnem no Shopping Eldorado para celebrar o ingresso na universidade (o famoso trote) cantando e pulando. Também muito semelhante aos atuais rolezinhos, porém nada acontece com esses/as jovens. Por fim, até o famoso grupo Mamonas Assassinas já cantava nos anos 90: “Esse tal Chópis Cêntis, É muicho legalzinho, Pra levar as namoradas, E dar uns rolêzinhos”!
Mas então porquê relembrar todos esses rolezinhos que aconteceram no passado? Para analisar a diferença do impacto causado na sociedade quando o mesmo é realizado por jovens negros e de baixa renda e quando é realizado por jovens brancos de classe média e alta. Os shoppings centers nada mais são do que espaços comerciais privados, onde tudo é comercializado, típico da política neoliberal. Um local que faz contraponto as praças públicas, frequentado tipicamente apenas por pessoas que tem condições de consumir seus produtos. Além do mais, ultimamente existem muitos empreendimentos sendo construídos em áreas até então desvalorizadas, próximo as periferias, argumentando um investimento empregatício e de entretenimento a população local, mas que enfraquece o comércio local, valoriza a terra da região próxima aumentando os impostos e consequentemente empurrando os moradores mais pobres para mais longe, “mais periferia ainda”. Independente da proximidade com a periferia ou não a repentina presença de jovens com uma aparência completamente diferente dos costumeiros frequentadores de shoppings causam extremo desconforto aos lojistas, funcionários e consumidores típicos.
A disposição de adolescentes e jovens de baixa renda, na sua maioria negros, de frequentar os shoppings centers vem de várias situações. O poder de consumo das populações de baixa renda vem sendo ampliada nos últimos anos, graças a programas sociais do Governo Federal. O povo pobre tem percebido que também pode ter acesso ao consumo de itens de valor, também pode comprar um carro, uma geladeira, uma televisão, e até mesmo frequentar o mesmo centro comercial da classe média alta, o Shopping Center. A ascensão do Funk Ostentação, estilo musical paulista inspirado em cantores de Rap americano Onde as letras já não tem mais conotação sexual, como o Funk Carioca, mas a exibição da riqueza também demostrada nos clipes musicais onde os cantores aparecem com acessórios de valor e em carros luxuosos, é além de incentivo ao consumismo desenfreado que o capitalismo nos trás, uma forma clara de dizer que as pessoas do andar de baixo também podem ostentar seus bens como as pessoas do andar de cima.
Mesmo que toda essa ascensão das populações de baixa renda possa lhe dar acesso aos bens de consumo, o acesso a cidade ainda é limitado. As nossas cidades ainda não possuem equipamentos públicos de qualidade como praças, quadras esportivas, ciclovias, bibliotecas, centros culturais entres outros que atendam a população. Nos caso dos/as adolescentes e jovens, não existem políticas públicas de juventude que possam incentivar a potencialidade criativa e o tempo livre. Isso somado a precariedade no transporte público que impede os/as jovens de terem acesso ao território e aos espaços urbanos da cidade.
Enfim, o povão da periferia frequentar espaços como shoppings está nos dizendo várias coisas: A primeira que podem se organizar utilizando a ferramenta da internet como instrumento de mobilização da juventude, mesmo que para eventualidades como um simples passeio; A segunda que eles também querem ter acesso a bens de consumo e a locais frequentados pela classe média e alta, e porque não?; A terceira a inexistência de equipamentos públicos de qualidade e políticas públicas de juventude que sejam acessíveis a todos/as, mais bibliotecas públicas, mais praças públicas, mais mobilidade urbana, mais praças esportivas, mais ciclovias, mais feiras populares, mais teatro, mais cultura, mais lazer, enfim, mais direitos.
O grande contraste na nossa sociedade, quando jovens brancos são muito bem recebidos e jovens negros são expulsos pela polícia e por liminar da justiça por fazer coisas semelhantes em um mesmo espaço é sim uma forma de racismo, segregação racial, apartheid... e com o respaldo do Estado quando a polícia e o poder judiciário protege um espaço privado em detrimento de diferenças de classes e cores de pele. Por mais que os lojistas argumentem o risco de violência e arrastões devido a enorme quantidade de participantes nas manifestações como os rolezinhos, esse perigo não é nenhum pouco demonstrado pelos mesmos lojistas quando os jovens brancos organizam os seus trotes universitários e flash mobs. Ninguém é hostilizado por ouvir sertanejo universitário, mas é hostilizado por ouvir Funk Ostentação, estilos musicais muito diferentes no ritmo mas muito parecidos na letra. O direito de ir e vir e o direito a livre manifestação não pode ser garantido só a quem é branco e tem dinheiro.
Além do racismo, a forma de agir da polícia traz de volta a tona a pauta dos autos de resistência combatido pelos movimentos e organizações de juventude. Tal abordagem nada mais é do que uma medida na época da ditadura que dificulta a investigação de mortes e lesões corporais cometidas pela polícia. Reter alguém sem motivos, com base em aparências, é criminalização prévia – apreender alguém por um crime ainda não cometido ‘que poderia acontecer’, uma abordagem policial originada na época da ditadura militar que deve ser combatida.
Assim como nas jornadas de junho, a truculência da polícia denunciada nas redes sociais da internet suscitou a solidariedade do pessoas de todo o Brasil. Agora os rolezinhos estão acontecendo em vários estados e municípios. Os movimentos sociais estão organizando manifestações contra o preconceito, a discriminação e o racismo. Pode ser um ‘esquenta’ para novas jornadas de junho agora em 2014. Também pode ser um aviso dos mais pobres aos mais ricos: “Nós também temos o direito de frequentar esse espaço, chegamos para ficar!”.
Walkes Vargas
Psicólogo
Militante da Pastoral da Juventude
Membro do Fórum de Juventudes
Psicólogo
Militante da Pastoral da Juventude
Membro do Fórum de Juventudes
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