quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A Escola e a Construção da Igualdade Racial: Um convite ao Debate

Sylene Godoy dos Santos [1]

“Não somos filhos de escravos.
Somos filhos de seres humanos que foram escravizados” 
Movimento Negro

            Aparentemente, mais uma cena comum em meio a tantos acontecimentos que se desenrolam no cotidiano escolar, à vista apressada de todos/as que se sabem parte do “lugar de vida” a que se afigura a escola. A partir de um olhar mais apurado, entretanto, trata-se de uma oportunidade salutar de reflexão sobre nós mesmos/as e um convite à consciência social crítica sobre uma cultura que tende a reproduzir o racismo, amalgamado no sistema educacional e na própria sociedade brasileira. 
 
            Chorando à porta do refeitório, em uma roda de crianças, achego-me ao aluno que aqui será chamado de Zupa:“Que aconteceu, Zupa?”. Ele me refere, tentando limpar os olhos: “Ele me chamou de escravo”. O aluno à frente, da mesma idade e bem maior em tamanho, retruca: “É, mas você me chamou de gordo!”. Neste momento, chega a educadora responsável pela turma, atenta a todos os movimentos das crianças, e exasperada para confirmar sua autoridade na dissolução de um conflito iminente, brada: “Zupa, pode ficar quieto agora. E engole esse choro. Você na classe coloca apelido em todo mundo. Depois, na hora que vem pra você, você não agüenta.Você chamou ele de gordo, e agora fica triste porque ele te xingou também. Pode parar com isso, você não tem razão não!”. Tão logo o enquadre disciplinador é feito, a roda de crianças se dissolve e elas vão comer juntas na mesma mesa, durante o horário da alimentação.
            Se pararmos pra pensar na classificação gramatical das duas palavras, “gordo” e “escravo”, entenderemos porque não se trata apenas de um conflito corriqueiro exibido no palco da convivência entre as “diferenças”, descortinadas pela extensa diversidade humana que o dia a dia da escola apresenta.
            A palavra “gordo” é um adjetivo. Como tal, confere qualidade a um ser - neste caso, a um ser humano, uma pessoa. Um menino, aos olhos de outrem, recebe a qualidade de “gordo”. Qualidades são mutáveis – considerar alguém como “gordo” pode se transformar, em outra ocasião, em uma qualificação oposta (Quantos de nós já discordamos e até nos indignamos: “Gorda ela? Imagina! Que exagero!”). A atitude de qualificar está sujeita ao olhar próprio de quem qualifica, e neste caso do adjetivo “gordo”, está ligada aos padrões sociais e estéticos próprios de uma época e de um lugar, que podem ser amplamente problematizados. 
            O termo “escravo”, por outro lado, é classificado como substantivo masculino. O substantivo, como classe morfológica, refere-se a um conceito, confere existência a algo, dá-lhe status de “ser”. Atribuir o nome – a conceituação – de “escravo” segundo a qual um ser será chamado refere-se, por um dicionário comum de Português, a “Que está sob o poder absoluto de um senhor”, ou ainda “Que está na dependência de outro”. Pela compreensão morfológica, assim como uma cadeira “é” uma cadeira e não será uma mesa ou uma árvore, um “escravo” é “uma coisa em poder de alguém”. Nesta classificação, furtam-se ao ente em questão – uma pessoa! - as condições de igualdade e liberdade, reduzindo-lhe a essência enquanto ser humano.
            Zupa é um aluno negro, de 10 anos, estudante do 4º ano de uma escola pública. Menino bastante vivaz, sensível, simpático, e inteligente – inclusive, o bastante pra perceber que o termo “escravo” não se tratava de um apelido comum e de uma brincadeira gratuita. Certamente já sentira na pele, outras vezes, a força da designação “escravo”, ligada à violência histórica de opressão do povo negro, relegado ao status de “coisa” – substantivo! - que se podia explorar segundo a lógica capitalista, visando à obtenção de lucro comercial.  Certamente, Zupa internalizara o significado profundo do preconceito ligado à pertença e afirmação da identidade negra (Aspecto que talvez esteja na raiz da reatividade desenvolvida sob a atitude de apelidar outros colegas). A operação racial – racismo – desenvolve-se como dominação psíquica, explorando elementos do universo conceitual – discursivo - e cultural para gerar práticas de inferiorização, em um jogo de poder que se reitera, e de opressão que se perpetua.
O Documento “Violências nas Escolas” (2001, UNICEF) afirma que “Como fruto da negação das práticas racistas diretas, o preconceito racial expressa-se mediante brincadeiras e piadas. Reconhecidamente a principal fonte de disseminação de estereótipos entre a comunidade escolar, os apelidos considerados ingênuos ou jocosos, perpetuam fronteiras de segregação e concepções discriminatórias” (p. 223).
Passar o termo “escravo” de substantivo a adjetivo, e daí a toda a revolução necessária à recuperação da dignidade do povo negro, sua cultura, história e identidade, exige uma desconstrução cultural, social e histórica que passa por aspectos discursivos, políticos, estéticos e educacionais. E que começa em uma boa mesa de refeitório, onde todos e cada um se sentam como iguais.
 Agradecidos/as a Zupa pela oportunidade de nos humanizar com sua situação concreta de vida, façamos de nossas práticas um convite cotidiano à (trans)formação das consciências, visando à afirmação plena da condição de igualdade e liberdade a que todos/as almejamos. Afinal, “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” (Cecília Meireles).


[1] Psicóloga da Prefeitura Municipal de Louveira/SP, atuando através do NAESPI – Núcleo de Atenção Especializada à Infância – nas escolas municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental I. Email: sylenegodoy@gmail.com. 

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