sábado, 17 de agosto de 2013

Ir. Lucinda: A eterna lavradora!

Irmã Lucinda
Humildade, compromisso, coragem. Acredito contornam os perfis pessoais da irmã Lucinda Moretti, uma das fundadoras da CPT/MS. Brasileira de São Sebastião do Cai/RS, nasceu em 16 de novembro de 1942. Ela veio falecer ontem num acidente no trânsito cumprindo uma missão pastoral. Em 6 abril de 2008 tive uma conversa com ela sobre sua ação pastoral- militante, sobre suas longas peregrinadas pelas estradas de chão de Mato Grosso do Sul. Falamos de Santa Idalina, a primeira grande ocupação dos sem terra no Estado, das reuniões secretas para pôr em prática o “evangelho subversivo”, do reino dos ‘cuidados’ para evitar a repressão dos militares e dos fazendeiros. Para ti irmã, esta homenagem simples, póstuma.



Texto e fotos: martí/comunicação cpt/ms


Assume-se “filha de pequeno agricultor”. Falar da irmã Lucinda é como falar da própria história da CPT em Mato Grosso do Sul. Vinda de uma região montanhosa de Rio Grande do Sul, seus pais sempre ganharam o pão trabalhando na roça. Todos seus irmãos até hoje são pequenos agricultores que se sustentam da terra e na terra de Rio Grande do Sul. Ela é um fermento que produziu a simplicidade da vida na roça. Ainda menina acompanha à família para o campo no dia a dia no serviço de mexer com a terra. Era costume na casa rezar o terço, depois da janta. Herdou de seus pais a vocação pela dação aos necessitados. Perto de cumprir dez anos de idade sente seus primeiros “chamados” à vida religiosa. Porém, só aos 22 anos inicia seu estudo para freira na Congregação Irmãs de São José de Chambéry. Do noviciado em Porto Alegre tem lembrança de outras irmãs (Eugênia e Lourdes), que influenciaram nela a consciência pelas questões sociais. Seu contato mais direto com pessoas necessitadas foi no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, onde dedicou sua missão logo após de sair do noviciado. O entusiasmo da juventude religiosa naquela época se dava no influxo do Concilio Vaticano II e da Teologia da Libertação, baseada na opção preferencial pelos pobres. Neste contexto a irmã Lucinda é chamada para “ajudar” na luta pela terra juntos aos camponeses.

Lucinda (primeira à esquerda) junto com as irmas
Gema e Clementina
Chega a Mato Grosso do Sul/MS (naquela época ainda Mato Grosso/MT)) nos primeiros meses de 1976. Fica na região de Glória de Dourados.  Junto com a irmã Olga Manosso inicia seu estudo e reflexão sobre a realidade do campo, dos lavradores, dos sem terra. Chega com o fastígio da monocultura do algodão, dos camponeses empurrados pela “revolução verde”, do exército de “bóias frias”, dos trabalhadores temporários que ficaram sem terra, sem futuro, dispostos a trabalhar por quase nada na terra dos outros.

A Lucinda chega oito anos antes da grande ocupação da Santa Idalina. Foram anos de militância, de formação, de articulação, de intenso trabalho pastoral. A comissão Pastoral da Terra no Centro-Oeste já se tinha estruturado, mais especîficamente em Goiás. E foi Ivo Poletto, educador popular e primeiro secretário executivo da CPT Nacional quem faz contato com as irmãs, padres e lideranças camponesas do MS. A irmã Lucinda lembra que o “amigo Ivo Poletto” convidou assistir num encontro da CPT naquele estado e que foi a irmã Olga Manosso quem compareceu lá. Foram os inícios de uma ponte com muitos alicerces e estradas cheios de desafios. A luta social e política pela reforma agrária no Mato Grosso do Sul se fortalece.

“Começamos fazer encontros com outras pessoas que tinham o mesmo pensar e a refletir sobre o valor do pequeno agricultor, e assim foi indo e a luta foi crescendo”, lembra a irmã. O crescimento empalma com a década de 80; amadurecem idéias e organizações. E antes aquela década chegar à sua primeira metade, 1984, em 12 de abril, encontra-se à irmã caminhando junto aos padres Adriano e Gervasio no meio da mata do latifúndio Santa Idalina, Ivinhema/MS, 284 km de Campo Grande. A irmã vê ali uma crua realidade. Pessoas, famílias inteiras de 11 municípios de Mato Grosso do Sul enfrentam o exercito, o frio, as doenças. “Até pessoas com malaria tinha”, segundo as palavras da Lucinda. Do relato dela se resgata que no dia 11 de abril as forças da policia iriam atacar os caminhões enchidos de camponeses na terceira linha no município de Gloria de Dourados e impedir que a fileira de transportes entrasse na Fazenda Santo Ângelo, sítio que conduz para Santa Idalina. Porem, um descuido dos ponteiros que conduziam os camponeses resultou, para as forças de segurança, numa infelicidade. “Numa curva do barreirão” que leva para Nova Esperança “se desvia o povo”, segundo lembra a irmã Lucinda. Más, neste caso, por ventura o erro, cai num feliz deslize, pois, quando a coluna dos fardados enxerga aos “invasores”, os caminhões já estavam lá dentro da fazenda Santo Ângelo, no caminho certo.

Ainda que prendessem depois os caminhões que vieram de Bataguassu, Bataiporã, Nova Andradina e de outras regiões do sudoeste do estado, não conseguiram deter a consumação da ocupação. A organização dessa mobilização pela terra consegue improvisar uma ponte esticando dois cabos de aço sobre o Rio Naviraí. Os homens da força do policiamento conseguem tirar a madeira, más não os cabos. Não era para cruzar o rio sem ponte. Embora, as primeiras que se jogaram na água se segurando só pelo aço foram às mulheres.  “Quando eu cheguei lá, no dia seguinte, com o padre Adriano, já se tinha improvisado um pequeno barco para atravessar o rio”, refere Lucinda. Na época o Rio Naviraí não tinha o assoreamento de hoje, pelo que aquela fase da entrada na Santa Idalina deixou mesmo ensinos de coragem e determinação.

O Fato da grande quantidade de doentes que precisavam de atendimentos de urgência no meio do mato mobilizou às irmãs da Pastoral Popular da Saúde e da Comissão Pastoral da Terra. A irmã Lucinda foi uma das que se aprontou para essa tarefa e chegou ficar uma semana dentro da ocupação num barraco de lona. Ela se lembra das irmãs Neide e Lucia, que ficaram até o dia do despejo que aconteceu em 11 de maio. A tarefa não foi fácil para as irmãs e se complicou mais por conta de que o policiamento não deixava que chegasse comida e remédios até os acampados dentro da Fazenda. O cenário social, político e militar, gerado pelos inimigos da reforma agrária, em função do caso Santa Idalina, foi simplesmente de terror. No meio de tudo, a Lucinda lembra que conseguiram vencer o medo e “ajudamos aquele povo nos primeiros dias dando apóio”.

A memória dos protagonistas registra fatos marcantes. Momentos e situações diferentes que ficaram para as partilhas, para o “depois”; para as horas mais vagas, de menos tensões; fossem elas para trazer tristezas ou chamar alegrias; sempre relembrando a luta pela terra. “Acho que o fato mais marcante para mim foi quando chegou dom Theodardo, o bispo, no meio do mato. E um lavrador de 75 anos mais ou menos, ele bem moreno, negro, se ajoelhou aos pés de dom Theodardo e lhe diz: trabalhei toda minha vida na terra e nunca foi minha; só tive terra debaixo das unas; penso que agora com a graça de Deus vou ter um pedacinho de terra. O bispo chorou naquele momento”, lembrou a irmã. 

O momento é de esperança no meio do policiamento, do cerco, da repressão. Num desses momentos também de permanência na área ocupada Lucinda vai buscar água do rio que corre perto e rega a floresta. Um jovem policial fica de repente na frente dela. O fardado pergunta em tom de surpresa:
O que a irmã esta fazendo aqui?
Ao que a Lucinda responde:
Não; você é que tem que dizer o que esta fazendo aqui!

Antes de vestir a farda de soldado o jovem tinha intenção de seguir a vida religiosa. Foi vocacionado no seminário, sendo o fato conhecido pela imã, e que também os manteve em comunhão de certa forma. Ele teria ficado “chocado” em ocasião daquele inesperado encontro, tanto que já casado e fora da policia sempre lembra o dia em que os dois estavam em lados opostos. Este acontecimento marcou também a memória da religiosa e que ela, simplesmente, o traduz dizendo que “a gente tinha uma luta e ele estava na outra luta”. A irmã partilha depois, aliviada, que ficou sabendo que o soldado tinha se “liberado” ao abandonar com o tempo a carreira militar.

Daqueles tempos Lucinda se lembra do Carlos Ferrari como sendo ainda agente da CPT e que depois daquelas lutas levou sua militância para o MST. Filho de camponeses, o Ferrari, segundo a irmã, se destacou pelo seu compromisso. “Foi um dos grandes estrategistas” que organizou as passagens por terra e pelo rio naqueles dias de luta pela terra, pois, era um conhecer dos recantos da região. Anota na memória também a sua companheira de luta a irmã Olga Manosso e o falecido Rosalvo. O medo era companhia de costume por essas andanças. Tinham-se pessoas marcadas para serem pegos; Olga e Rosalvo não podiam sair andando nas beiras dos conflitos. O regime político repressivo tinha-os marcado, queria prendê-los. Foram adotados mecanismos de segurança como a comunicação por códigos que deram certo no sentido de que a primeira grande ocupação de latifúndio no Estado aconteceu com êxito na prática. Outros episódios importantes contribuíram. Embora nada suprissem a organização e o “espírito revolucionário do evangelho” ungidas nas comunidades eclesiais de base.

Os agentes da CPT, de acordo com a opinião de Nelson Trad, deputado daquela época, embora, só criavam “confusão e baderna”. Os Trad trouxeram com o tempo no MS uma camada quase monárquica de políticos de direita, linhagem historicamente contraria as reivindicações dos camponeses no Estado.
Só com a unidade se poderiam enfrentar os perigos e desafios daquele tempo e, segundo a Lucinda, isso foi possível porque se tinha a Dom Alberto, Dom Theordardo, padre Gervasio, dentre outros, que apoiavam a luta dos sem terra em busca de chão, vida e futuro.

Caminhar. Ela se torna uma palavra chave. Xaropes; ervas medicinal, e todo tipo de remédios caseiros são tão importantes como a luta mesma, sempre que a caminhada fosse “junto a esse povo” e pela reforma agrária. As irmãs acompanharam aos camponeses que “perderam a batalha” até a vila São Pedro, perto de Dourados. Muitos doentes, depois dessa peleja, ficaram. A irmã Lucinda deu ajuda espiritual; força para a consciência e xaropes para sarar os doentes...Nos últimos anos, na sua querida Jutí, foi simplesmente uma lutadora incansável...nunca mais parou de lutar junto aos pequenos lavradores.

Irmã Lucinda, eterna lavradora, VIVE!


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