quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Corpos nus incomodam?

Vi que disseram que o movimento errou quando tiraram a roupa. Vi que disseram que o movimento não mais representava-os quando tiraram a roupa. Vi que pediram desculpas (em nome de todos) quando tiraram a roupa. Vi que disseram que viraram vândalos quando tiraram a roupa. Vi que disseram que era desnecessário tirarem a roupa. Vi que falaram da roupa mais que da desocupação da câmara.

O que eu vi, e não me disseram, foi que por mais de 40 dias sonhos ocuparam um lugar vazio deste elemento. Que por mais de 40 dias um lugar de tantas culpas, foi ocu(l)pado, o-culpado de tantas mudanças. Uma casa de leis, foi preenchida de pessoas, esperanças, lutas e ideias.
O que eu vi foi a resistência linda de gente que não se resignou. Foi a manutenção dos propósitos de gente que não desistiu, de gente que perseverou. Foi a presença de gente que não se permitiu dominar, enfraquecer, de gente que não se permitiu desistir.
E quando estas pessoas, representativamente, se opuseram mais uma vez ao que está posto, o que eu vi foram críticas. Ora, o que vocês esperavam? Esperavam que esta - gente forte, resistente, focada, esperançosa, brava, sagaz, inteligente, essa gente que não se deixou oprimir, que resistiu e que insistiu, essa gente que se manteve em pé - esperavam mesmo que essa gente simplesmente se rendesse ao final?
Que simplesmente recolhessem tudo, e fossem embora? Sem marcar, das mais possíveis e múltiplas formas, a desocupação? A nudez foi só mais uma ação. Não foi a única.
Essa gente não tem jeito, sofre de males que são cada vez menos comuns: esperança, sede de justiça, ideologias e vontade de mudar as coisas. São pessoas que, infelizmente, não estão ligando muito para a novela das oito. E nem para o que a mídia publica ou considera agressão. São pessoas que não se rendem...
Essa gente – mesmo quando vestida – foi às ruas, levantou cartaz, pintou cartaz, colou cartaz, varreu a câmara, pulou catraca, discursou, enfrentou políticos poderosos, constou em processo de reintegração de posse, saiu nos jornais da cidade e do país. Essa gente esteve em reuniões, dormiu em chão frio, riu, se divertiu, conheceu gente nova, festou, lutou, escreveu, estudou, debateu, acolheu, revoltou-se com mesas que valem mais que pessoas. Essa gente não acha normal que pessoas infartem, que a saúde municipal esteja um caos. Essa gente e não aceita que o transporte público seja horrível. Essa gente não se permite crer que o mundo seja mesmo horrível e que não há possibilidade de mudança.
E do que são acusados? De quebrar uma mesa, um quadrinho de vidro, ‘rasgarem’ blocos de anotações de jornalistas e de ficarem pelados?
Ah, me poupem!
Deviam ser culpados de representar os interesses de tanta gente sem voz. De pertencerem a uma classe rara: os que não somente reclamam, mas que vão à busca de soluções para os problemas. Já imaginaram que dormir fora de casa pode ser menos cômodo? Que ter a preocupação de ocupar um lugar 24x7 pode ser uma preocupação bastante grande? Já refletiram sobre a grandeza do ato? Das reuniões, do avanço das pautas?
Deveriam ser culpados de serem protagonistas da própria vida?
Essa gente – vestida ou pelada – me representa. Me representa e me orgulha, me inspira e me faz acreditar em um mundo melhor. Um mundo as pessoas acreditem menos na ‘imprensa’ ocupem mais câmaras municipais (ou qualquer outro prédio público). Um mundo onde as pessoas critiquem menos os vândalos e pressionem mais os prefeitos, vereadores, deputados, senadores. Um mundo onde as pessoas até fiquem pelados, mas façam a tarifa (injusta) de ônibus baixar. Um mundo onde as pessoas sejam menos inquietas com todas as coisas que acontecem ao nosso redor e fingimos não ver.
Devo dizer que não estava presente na ‘farra da desocupação’, mas que gostaria muito de ter estado. Devo dizer que tenho enorme admiração por estas pessoas. Devo dizer que sou imensamente grato e representado por vocês. Algumas pessoas esqueceram-se que os quadros estiveram cobertos com fotos de indígenas (Sim, precisamos pontuar essa realidade em nosso Estado). Algumas pessoas, na verdade, nem souberam disso.
Se os primeiros habitantes deste país tiveram logo seu corpo (imoral) coberto pelos colonizadores, isso quer dizer que os corpos importam, incomodam, detém poder, geram demandas e discursos, os corpos existem e devem ser ‘domesticados’.
Os corpos devem ser padronizados, embelezados, mitificados e comparados. Os corpos devem ser exaltados ou diminuídos, conforme sua aparência (ou porção (des)coberta)).
Os corpos nus incomodam porque fogem à norma. Porque assumem-se, porque confrontam e questionam. Os corpos nus mostram que somente @s don@s tem controle sobre eles. Que somente uma mente tem poder sobre eles – a d@ proprietári@.
Até que ponto tirar (uma parte d)a roupa é imoral, errado ou feio? Se fossem só meninos sem camisa, existiria a possibilidade de serem acusados de ‘atentado ao pudor’?
Se o grupo estivesse de cueca e calcinha, atentado ao pudor?
E mais, até onde me consta – e, por favor, corrijam-me se estiver errado – o atentado é caracterizado por uma ofensa (ou possibilidade desta) à outra pessoa. E, honestamente, se você se sente ofendid@ pelo nu alheio, deveria se questionar sobre isso.
Nascemos nus. Vivemos nus – com roupa. Ficar sem roupa é tão ruim assim? Quem foi que nos ensinou que devemos vestir para ser? Vestir para existir? Mesmo que não sejamos indígenas dos anos 1500, ainda assim tirar (ou não colocar) a roupa é uma ofensa?
O corpo incomoda, né?
Um corpo gordo? Importa.
Um corpo preto? Importa.
Um corpo de pessoa trangênera? Importa.
Precisamos normalizar estes corpos. Dizer quais são aceitáveis e quais não. E mais, é claro, devemos vesti-los. Corpos nus importam. Importam porque estão afrontando essa normalização. Estão questionando minha imposição de que deveriam estar cobertos. Corpos nus importam porque protestam! E sim, a nudez é um protesto válido.
Façamos assim: ao protestar com fotos de indígenas substituindo outras fotos nos quadros da câmara, desconsideremos a parte indígena da formação da nossa identidade – até porque nisso a gente já tem experiência – e assumamos a parte ‘europeia’ da nossa formação – que é mais ‘chique’ e que também temos mais prazer em aceitar – já que é esta parte que nos ensinou a vestir as roupas (aliás, inicialmente muitas) é mais ‘moral’.
O nu pode ser protesto. Protesto pela causa indígena, para relembrar o quanto os negros sofreram sem roupa nas senzalas, para pontuar o quanto pessoas em situação de rua estão expostas ao frio, enfim, para uma série de finalidades. O nu não pode ser ignorado como uma forma legítima de protesto. E, penso eu, que não tem que estar, necessariamente, num “contexto”.
Não ignoremos o quanto nossos corpos são vigiados, educados e disciplinados.
Não nos esqueçamos o quanto vale nossos corpos.
Vamos ignorar o corpo e seu poder político?
Vamos ignorar o quanto a cor dos corpos já causou sofrimento neste mundo? O quanto feições já separaram pessoas? O quanto as curvas já impuseram opressão?
Você tem vergonha do seu corpo?
O corpo é sim um instrumento de luta. E um instrumento que ninguém te tira. Vão dizer: Mas tirar a roupa vai adiantar o quê?
Eu respondo perguntando: você sabe o quanto as coisas foram ‘adiantadas’ (para você e para a cidade) através do movimento? Sabe dos protestos que foram feitos anteriormente? De quantas reuniões foram necessárias para chegar até aqui? Sabe o quanto estes mesmos corpos se desgastaram neste percurso? Se você não sabe, então depois a gente conversa, ok?
A câmara foi ocupada com transformação, renovação e intervenções. Neste período este espaço foi, ao menos em parte, de fato, do povo. Se o poder emana do povo, como não emanar poder do corpo do povo? No meu corpo e nos meus sonhos, mando eu.
Para dani, indião, paula, rui, diego, matheus (cobrador de impostos), cristiano, japa, gleice, laine, wagner, rafael (ou seria gabriel? Ah, é o cabeludo com nome de anjo...), macister, periquito, tatu’s, leandro, suelen, fernanda, regino, evandro, jessica, alain, ana, carol, victor, daniel e todos aqueles/as com quem tive a honra de dividir alguns momentos nessa caminhada e que ainda precisam de muitas coisas para realizar sua vontade de mudar esse mundo – menos roupas.

Há braços

Cristiano Santos

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