“Eu vi muito bem a miséria do meu povo indígena Guarani Kaiowa, que está na beira das estradas, debaixo das lonas, acampados, confinados. Ouvi seus clamores contra os opressores, fazendeiros, latifundiários. Conheci seus sofrimentos, angustias e dores”. (cf. EX 3, 7).
“Este clamor dos povos indígenas chegou até nós religiosos e religiosas do Mato Grosso do Sul. Esta opressão contra nossos povos, pela expulsão de suas terras e confinamentos chegaram aos nossos ouvidos, por isso sentimo-nos enviadas, enviados para somar forças junto a todos e todas que estão diretamente envolvidos nesta causa”. (cf. Ex 3, 9)
Como CRB e como Congregação Franciscana de Nossa Senhora Aparecida, estive, nos dias 19 a 22 de setembro de 2010, na região de Dourados Mato Grosso do Sul, junto ao CIMI, numa visita aos acampamentos e aldeias de partes da região de Rio Brilhante, Douradina, Dourados, Coronel Sapucaia e Ponta Porã. Vi de perto o sofrimento, a dor do povo Guarani Kaiowá na luta pela retomada de seus Tekoha (terra sagrada). Vários acampamentos sofrem ameaças e lideres são perseguidos, crianças morrem de desnutrição e falta de atendimento médico e alimentação adequada. Em algumas áreas nunca tiveram a presença da FUNASA, alegando serem áreas de conflito. Outras a alimentação entregue pela FUNAI chegam com atraso. Nestes lugares o CIMI mantém-se presente junto a este povo animando-os em suas lutas, fazendo-se solidários em suas necessidades e fazendo ponte junto aos órgãos responsáveis para que agilizem o processo de demarcação o quanto antes, publicando urgentemente os relatórios de identificação das Terras Guarani Kaiowá. O que falta é a agilidade dos GTs (Grupos de Trabalho).
Vi também os sinais de esperança de um novo céu e uma nova terra. Áreas já retomadas, embora algumas sejam, na verdade, um confinamento. Como é a região de Dourados. Aproximadamente 14 mil indígenas em uma área de aproximadamente 3.600 hectares. É um absurdo! O boi, a soja, a cana valem mais que uma pessoa.
Como CRB Regional, no que tange a questão indígenas assumimos uma prioridade que ai está: 2) Avivar a dimensão profético-missionária da VRC, atuando em rede e parcerias nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos empobrecidos, assentados e indígenas e fortalecendo o compromisso com as causas sociais, econômicas, políticas e ambientais.
Visitamos vários acampamentos e áreas de retomadas. Dia 19 de setembro, na beira da BR 163, acampamento Laranjeira Ñanderu, onde desci do ônibus e fui acolhida por este povo sofrido e alegre. Estava no momento da reza de acolhida. Lá já se encontravam os missionários do CIMI: Egon Heck (MS), Paulo Suess (Nacional) e Geraldo (MS) também o líder indígena Zezinho que partilhava conosco a realidade. Para mim foi um momento único. O sonho de estar junto a este povo se tornava realidade. A emoção misturada com a dor de vê-los neste abandono tomava conta do meu ser. A colocação deles sobre a realidade de riscos que estavam passando na beira da estrada e o desejo de voltar a sua terra corta o coração e por várias vezes me contive as lágrimas. Conduziram-nos para os seus barracos e nos apresentaram as pessoas mais idosas e o sonho de retomar para suas terras.
Seguimos para Dourados onde pude conhecer a casa da equipe CIMI-Dourados.
A tarde fomos ao acampamento Ita’Y Ka`Aguyrusu – Município de Douradina – Lagoa Rica. Nesta região o povo sofre perseguições e ameaças constantes por parte dos produtores rurais. Estão sitiados. Seus barracos foram queimados e os mesmos despejados na beira da estrada. Retomaram novamente e ainda estão sendo perseguidos.
De onde vem à força para este povo vencer? Quais são as armas? Suas armas são os momentos de reza ao Ñanderu. Ao som do Mbaracá vai levando o povo à resistência na luta de volta para seu Tekoha.
O Evangelho vivo de cada dia
Dia 20 de setembro fomos para Passo Piraju – uma terra de retomada. O Evangelho de hoje nos diz que a luz não foi feita para ficar escondida. Esta luz da luta do CIMI não pode ser escondida. Os avanços e lutas incansáveis destes missionários e missionárias, verdadeiros profetas, deve ser publicado nos quatro cantos do mundo. Quanto brilho nos olhos do povo indígena quando recebe a presença do CIMI em seu Tekoha (terra sagrada).
Tivemos o depoimento do senhor Carlito e seu genro Valmir. Estes depoimentos foram depoimentos proféticos da dor do povo Guarani Kaiowá. Quem grita os seus direitos, corre o risco de ser abafado pelo poder, pela polícia repressiva. Assim aconteceu com este povo. Sofreram agressões e estão sendo penalizados por isso. Mas como dizia sr. Carlito: “Deus conhece, Ele sabe... Deus nos deixou este ‘Lençol’(terra). Só que ela está com um novo lençol que não é o dado por Deus”. E afirma sr. Carlito que lutará por retomar o que é seus e para os seus. Por várias vezes se emocionou diante da grande dor que sente frente a tudo o que estão passando. Isto não foi diferente conosco que lá estávamos ouvindo-o. A dor do povo é a nossa dor.
Dizia sr. Carlito: “Chega de sermos esquecido”. “Queremos mostrar para a sociedade branca que temos dignidade, que temos caráter, o que não temos é oportunidade, por não ter o que é nosso...” Este povo está sendo ameaçados pelos policiais que instalaram uma guarita do outro lado do rio Dourados e nos fins de semana ficam atirando e tentando intimidar a população indígena. Impedindo-os de saírem para buscarem o alimento do seu sustento. Visitamos também a esposa do sr. Carlito, dona Plácida, que nos relatou suas dores e sofrimento devido espancamento da polícia ao ser levada presa em um confronto que sofreram com a polícia do qual dois policiais acabaram morrendo. Um pela própria policia, acidentalmente e o outro pelo indígena em sua legítima defesa, pois os policiais chegaram atacando.
Após depoimento indígena, Egon Heck – CIMI, informava a comunidade sobre o andamento dos processos e situações das demais comunidades em luta e retomada. Esta rede e sintonia fortalecem e animam as comunidades.
Paulo Suess anima e dá uma palavra de conforto e esperança a este povo dizendo que a “luta indígena é como o rio, mesmo sendo desviado do seu curso, um dia ele retoma o seu antigo leito normal. E assim está acontecendo com os povos indígenas do Mato Grosso do Sul e tantos outros povos”. Estão retomando ao seu destino de origem. É preciso festejar cada passo dado! Com foguetes! É preciso festejar também a derrota dos poderosos! “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humildes”.
A tarde fizemos visita a Comunidade Religiosa das Irmãs da Consolatas. As Irmãs partilharam sobre a realidade de trabalho com as mulheres indígenas: projeto corte costura e acompanhamentos religiosos. Partilharam o grande desafios de grupos religiosos na aldeia que vão matando a expressão própria dos indígenas de manifestarem seu culto, sua reza. Impedindo até mesmo as crianças de brincarem, jogarem bola, etc. dizendo que ‘é coisa do diabo’. É fraco o catolicismo. Há pouca presença ou quase nada da presença da Igreja, exceto as Irmãs e agora chegou Pe. Teodoro, que fala o Guarani e está sendo uma presença animadora ao povo junto com as Irmãs. Há também um grande número de juventude sendo atingidos pela droga, também relatam casos de suicídio. Estes povos estão confinados neste pedaço de terra. Consta a presença de 14.000 índios para uma extensão de 3.600 hectareas de terra, segundo os dados da Funai. Afirmam que na região o preconceito aos indígenas é muito forte.
Dia 21 de setembro de 2010. Dia da árvore! Véspera de primavera! Há sinais de esperança. E como dizia D. Hélder: “onde existe um restinho de esperança é meu dever alimentá-la”.
Vejo que com todas estas lutas, dores e sofrimentos a primavera está se aproximando na vida desta nação tão pisada nestes 500 anos de massacre e resistência.
O Evangelho de hoje fala que depois da morte de João Batista Jesus foi com seus discípulos para um lugar afastado. As multidões vão ao encontro dele. Uma multidão faminta e doente. Jesus as acolhe e fala a elas do Reino, restitui a saúde de todos que precisavam de cura.
Hoje eu vivenciei esta passagem do Evangelho nas pessoas do CIMI em contato com os povos indígenas. Fomos visitar a retomada de Kurusu Ambá – Município de Coronel Sapucaia, fronteira com o Paraguai. Este povo é mais um sinal de resistência, de luta em busca de seu Tekoha. Já é a quarta vez que voltam ao seu território. A FUNAI está fazendo o trabalho de identificação. Chegamos de surpresa, pois é difícil a comunicação. Um lugar retirado como tantos outros... o povo vive no deserto, a terra está deserta, coberta de pasto, aveia... e o povo com fome e sede de justiça, de direito e dignidade.
Logo ao chegarmos à aldeia uma jovem – Berenice – nos falou do caso de uma criança de apenas 03 anos de idade, que se encontrava gravemente enferma. Prontamente a equipe do CIMI foi ao local onde se encontrava a criança e sua mãe e nós a acompanhamos até a Casa do Índio em Amambaí para cuidados médicos.
Enquanto a mãe se preparava fomos conhecendo o espaço e ouvindo as lideranças em seus depoimentos. Fomos fazer uma caminhada na mata, sentir o cheiro do verde esperança de vida em abundância. Até retomei meus tempos de criança e desafiei a passar pela pinguela de um tronco de arvore deitado sobre o pequeno córrego no meio da mata.
Ao chegarmos no local de volta estava o grupo de reza ao som do Mbaraká (instrumento de chocalho usado pelos homens) e Taquara (instrumento usado pelas mulheres) ao redor de uma cruz.
Como em todos os locais por onde passamos, houve um momento de ESCUTA por nossa parte, sobre suas realidades e do nosso lado uma palavra do CIMI.
Senti como no tempo de Jesus. “Daí-lhes, vós mesmos de comer”, assim é o papel do CIMI. Não uma comida que sustenta no momento, mas o alimento que ajuda no protagonismo deste povo. Um alimento que ajuda na reconquista de seus Tekoha, de sua dignidade como pessoa humana. Um alimento que mexe e ativa os órgãos estaduais e federais no seu dever junto a estes povos. Este testemunho do CIMI é uma resposta ao mandato de Jesus acima citado.
Retornamos a Amambaí aproximadamente às 11hs da manhã. Laila com a criança doente nos braços. A mãe da criança ao lado com um outro no colo. Lá fomos. A criança sem forças, desidratada, pedia água. Egon na direção acelera para chegar a tempo de socorrer a criança. A distancia era longa... que dor ao ver esta realidade. Enfim chegamos ao local. Onde entramos juntos na Casa de Saúde Indígena da FUNAI – Amambaí. Na esperança de salvar esta vida. Mas no dia seguinte recebemos a noticia que a mesma veio a óbito às 19 hs. Às 23 hs retornaram com a mesma para a aldeia. Mais uma criança indígena vítima! Não teria acontecido isto se providencias tivessem sido tomadas por parte da FUNASA, que nunca apareceu no local. E por lerdeza da FUNAI em atender a solicitação dos indígenas.
Dirigimos para Ponta Porá onde Egon tinha uma entrevista com a TV Morena sobre o caso do Ypoi. Uma área de retomada onde os povos indígenas se encontram sitiados pelos produtores rurais. Local onde foram assassinado dois indígena: Genivaldo e Rolindo. Genivaldo, o corpo foi encontrado 7 dias depois e Rolindo até hoje não foi encontrado. Nesta área não há permissão nem para sair, nem para entrar. Neste período, conta eles, que uma criança precisou de atendimento médico e teve que ser levada de madrugada, por dentro da mata, a um Posto de Saúde.
Retornando para Dourados, no entardecer, o sol se pondo e o luar surgindo entre a árvore seca à beira da Rodovia 463, chegamos ao barraco de dona Damiana Cavanha – líder indígena do Acampamento Apycaí – Curral de Arame. Ao redor cana de açúcar. Esta retomada já tem dez anos de luta. O CIMI mostrou o filme do dia de confronto onde as casas foram queimadas nesta região e depoimento de Damiana.
Assim passaram estes dias nestas terras indígenas que esperamos, que não demore muito sejam devolvidas ao seus verdadeiros donos. Ficaram em mim a marca, a convicção e o desejo cada vez mais forte de continuar nesta causa e de levar às demais pessoas que ainda desconhecem esta realidade.
“Os discípulos devem estar livres, ter bom senso e estar consciente, de que a missão vai provocar choque com os que não querem transformações”.(rodapé bíblia pastoral – Mc 6,6-13)
Diante do Evangelho de hoje encerro agradecida a Deus, a Congregação, a CRB e em especial ao CIMI, por este espaço e esta oportunidade de vivenciar mais de perto o Evangelho de Jesus Cristo junto aos Povos Indígenas. “Em qualquer casa onde vocês entrarem, fiquem ai, até vocês se retirarem”. Agradecida pela acolhida e mais fortalecida pelo testemunho incansáveis da equipe do CIMI – Campo Grande - MS e Dourados -MS.
Vou, com o coração cheio de inquietação na esperança de retornar com mais força, coragem e vigor.
Ir. Joana Aparecida Ortiz – (CIFA)
Congregação das Irmãs Franciscana de Nossa Senhora Aparecida
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