Em que lugar, hoje, Maria e José obteriam acolhida para o parto iminente do filho esperado? Se estivesse nascendo agora, com qual criança mais se assemelharia o Menino Jesus?
Às vésperas do seu aniversário, parece de todo oportuno procurar-se responder tais perguntas, já que o natal é a celebração de um nascimento que mudou a história da humanidade toda. Pela sua conhecida pobreza, a mãe o pai procurariam, quem sabe, a emergência de algum hospital que atenda pelo SUS. Ansiosos, são recebidos no balcão de informações, em meio a um grupo grande de gente doente e triste, cabeça baixa, esperando chamada, com uma senha na mão.
Começa, mais de dois mil anos depois, a histórica desculpa: Não. Lamentamos. Vocês terão de procurar outro hospital. Vejam que até os nossos corredores estão lotados. Não temos um leito, sequer, disponível, nem médicos e enfermeiras suficientes para tanta gente.
Sem o dinheiro que, como se sabe, dificilmente deixa de abrir qualquer porta, batem na sacristia de uma Igreja. Não. Aqui não se pode hospedar ninguém. A gente batiza, reza missa todos os domingos, faz a catequese da primeira eucaristia, celebra casamentos, exéquias de pessoas falecidas. Uma vez por mês reunimos a comunidade num almoço. É verdade que temos hospitais, também, mas eles são obrigados a cobrar internações porque os subsídios públicos nunca chegam em dia e os atrasos estão levando todos eles à falência.
A preocupação e a angústia crescendo, José meio desesperado, Maria sentindo as primeiras contrações, resolvem tomar o rumo da periferia urbana para, quem sabe, em algum galpão abandonado, a mulher consiga parir, quando menos, abrigada.
Lua que se acende e apaga no andar das nuvens, por ela conseguem entrever algumas luzes, ouvir algumas vozes numa corrente de barracas de lona preta estendida na beira da estrada. Denunciados pelo latido dos cachorros, chegam muito envergonhados numa delas. Um casal tão pobre como os recém chegados, levanta o candieiro para identificá-los e pede para eles entrarem imediatamente, pois já adivinhou que a urgência não admite outro gesto. Maria, já sem tempo, consegue se deitar num acolchoado velho que, no chão da barraca, serve de cama para o casal. Três crianças, duas meninas e um menino, dormem profundamente, recolhidas num canto mais abrigado.
Os visitantes mal conseguem se apresentar. "Eu sou Laurindo. Prazer". "Eu sou Joana, prazer". Juntamente com José, passam a se movimentar ligeiro, como se tivessem ensaiado, pois a coisa toda não pode acabar mal. Os homens reavivam brazas que já estavam agonizando num fogo de chão, achegam gravetos que sobraram do uso anterior que cozinhou só feijão, por sinal queimado, pelo cheiro que ainda se sente. A fumaça toma conta do ambiente e faz arder os olhos de quem espera, agora, numa ansiedade do tipo que afoga. A mulher conseguiu ferver água e escaldar uma faca de cozinha, à vista de Maria, mal coberta por um lençol surpreendentemente limpo que uma vizinha, avisada do caso, lhe alcançou. O homenzinho se livrou do ventre materno, separado pela faca de Dona Joana, a um choro alto e forte, de quem sorve o primeiro ar e reclama a primeira mamada.
Uma alegria aliviada se desata. Serena, se apossa de todos. Os ocupantes das outras barracas, tudo gente sem-terra e sem-teto, que também ainda não encontrou lugar para ficar, como o pai e a mãe do recém nascido, acorrem pressurosos em ajudar. Laurindo e Joana honrados, Maria e José confortados, há um que de solidariedade amorosa, feita de palavras e gestos, todo o mundo querendo repartir o pouco que tem com o casal de viajantes que festeja a chegada do primeiro filho.
No outro lado da cidade, muito longe dali, um foguetório faz-se ouvir, a noite se enche de sons, risos, as ruas, as árvores e os edifícios cobertos por milhares de pequenas lâmpadas coloridas, piscando, são cercados por gente que troca presentes, se abraça, anda atrás de um papai noel arquejante, vermelho na roupa e no rosto, o cabelo e a barba branca artificiais mal dependurados num gorro já meio caído, pelo peso de um saco que ele balança nas costas, cansado de representar, apenas, um papel.
Comparadas essas pessoas, comparados esses lugares, será aqui, ou lá, que o Menino Jesus nasceria hoje? Entre a pobreza e a escassez de lá, ou a fartura e até o desperdício daqui?
Por tudo o que a criança viveu e ensinou depois, soube-se que ela acabou sendo perseguida, tanto pelo poder político, como pelo econômico e, até, o religioso. Acabou morrendo numa cruz, resultado de um julgamento no qual nem o direito de defesa lhe foi garantido.
A semelhança do seu nascimento e da sua vida com o nascimento numa barraca e a luta que empreendeu depois em favor das/os pobres, não nos deixa duvidar de que, hoje como ontem, são milhares as crianças que nascem nas condições miseráveis nas quais nasceu o Menino Jesus, e são muitas/os as/os adultas/os sem-terra e sem-teto que morrem por defender a mesma Justiça que Ele defendeu. Entre a devoção que se presta ao Papai Noel e o Menino Jesus, então, há uma distância que beira ao escárnio. Substituir esse por aquele, no natal, é como dar-se preferência às coisas, às mercadorias, aos símbolos do consumo, do que às pessoas, aquelas que conosco vivem, especialmente as que, como a Tal Criança, é necessitada e pobre.
Há um tal poder de repressão a esse povo pobre, do qual Ela fazia parte, que até as farmácias caseiras e as escolas itinerantes que, por força de sua própria condição humana, ele é forçado a criar, em defesa de sua dignidade, são destruídas pela perseguição que contra ele movem forças públicas e privadas.
Não raro, como aconteceu recentemente aqui no Rio Grande do Sul, algum/a dos/das seus/suas integrantes derrama o seu sangue sobre a terra que lhe é negada, como negada foi a hospedagem normal para José e Maria. Como Jesus Cristo, esse também é um povo crucificado.
Em vez de andar atrás de um velho ridículo, então, o natal nos convida mesmo é a descer esse povo da cruz, incorporar o seu sofrimento, servindo-o ao ponto de enxugar-lhe os pés, assim seguindo o exemplo de Quem nasceu, viveu, amou e morreu por ele.
Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin
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